sábado, 14 de agosto de 2010

Uma tarde com Glória Perez

Estive dia 04/08, na deliciosa Quarta as Quatro, encontros promovidos na Biblioteca Nacional com o nome Livros Vivos – Histórias Originais. A convidada do dia era Glória Perez e o público bastante heterogêneo vibrou com a simpatia e a disponibilidade da autora.
Os jovens alunos da Escola Professora Luíza Marinho, convidados da ocasião, souberam aproveitar bem a oportunidade e ouviram atentos as histórias de Glória, além de fazerem perguntas elogiadas pelo mediador, Vitor Youri, que  abriu o Encontro apresentando o Programa, que está no 5º ano e este ano faz parte das comemorações pelos 200 anos da Biblioteca Nacional. Ao apresentar a convidada disse que “O Brasil inteiro gosta de Glória Perez pelas causas que ela abraça”.
Articulada, Glória não fugiu de nenhuma pergunta e compartilhou com o público suas idéias, convicções e o seu processo criativo.
O tema do merchandising social, marca freqüente de suas telenovelas, surgiu várias vezes. Glória deixou claro que gosta de abrir espaço para dar voz a quem não tem. Foi assim desde Partido Alto a primeira que assinou (junto com Aguinaldo Silva), Como a novela se passava no bairro do Encantado, no Rio foi até a Associação de Moradores conversar com as pessoas e descobriu o grande problema do bairro: falta de transporte coletivo. Resolveu então colocar a personagem Sulamita constantemente reclamando dos pés inchados de tanto andar devido a falta de ônibus. Orgulhosa, Glória contou que esta campanha foi experimento e no final da novela a comunidade do Encantado finalmente ganhou um ônibus.
Fiel ao seu método de ouvir as pessoas atingidas pelos problemas que quer retratar, Glória conversou com Dependentes Químicos para abordar o tema do Dependente Químico em O CLONE e com pacientes de Hospitais Psiquiátricos para falar do Esquizofrênico em CAMINHO DAS ÍNDIAS. Ela contou que estes eram dois grupos que sempre quis abordar.
O legal é que Glória usa sua verve de pesquisadora e vai a campo. “Não quero teoria de ninguém, quero ouvir”. Quando entrevistou os dependentes químicos ouviu deles que o erro das campanhas anti-drogas era tratar a droga como uma coisa ruim, pois só quem já está no fundo do poço sabe disso. Para quem está começando, a droga é boa. Glória quis então mostrar a trajetória do dependente desde o início através da personagem Mel, uma jovem que no inicio encontra prazer na droga e aos poucos vai tendo sua vida arruinada por elas. Para fazer esta campanha, Glória contou que precisou falar com autoridades e no inicio chegou a receber criticas de que estaria fazendo apologia ao uso das drogas, mas, quem viu a novela até o fim viu como Mel terminou, envolvida num pesadelo.A mensagem que Glória quis passar foi a que ouviu dos próprios dependentes: “Nós não somos mau-carateres, a droga nos tira o caráter”.

Já em Caminho das Índias, a personagem Ivone nasceu a partir da reivindicação dos pacientes psiquiátricos com quem a autora conversou. A maior queixa que tinham era o fato da sociedade achar que são seres capazes de tudo a qualquer hora. Glória quis mostrar então que não há nada mais diferente do que o psicopata – esse sim um ser sem culpa e capaz de tudo – e o louco, afinal “enquanto o primeiro não tem emoção, o segundo se afoga na emoção". Para ela,o resultado da campanha foi positivo. Muitos psicanalistas e profissionais de saúde lhe contaram que a partir da novela os pais começaram a admitir a doença de seus filhos, apesar de toda dor que a esquizofrenia acarreta para família. Muitas mães camuflam a doença porque é muito difícil admiti-la, só que enquanto houver negação é impossível tratar a esquizofrenia e quanto antes o tratamento tiver inicio melhor é.
Questionada sobre o porque ter escolhido o povo mulçumano para ser retratado em O Clone, ela contou que seu ponto de partida foi o desejo de abordar a clonagem humana. Achou que seria interessante confrontar a idéia do clone, que é um desafio a idéia de Deus com a cultura mulçumana, que é a mais submissa à Deus.
Glória tem paixão pela diferença, por isto gosta de abordar culturas diferentes da nossa. Ela acha ainda que temos que situar as coisas no tempo que acontecem. Não dá para fazer, por exemplo, uma novela de época em que todos os personagens se vistam de maneira igual. Uma época não é hegemônica, um tempo é o resultado do entrelaçamento de vários tempos. Ela fez a platéia rir quando contou que às vezes fica imaginando arqueólogos encontrando daqui a milhares de anos uma roupa do cantor Falcão e achando que nos século XXI todos se vestiam daquele jeito.
Glória também falou do trio Raj, Bahuan e Maya e contou como encaminhou a história. Para ela, toda novela tem que ter no mínimo um triângulo amoroso, Se for uma história só de dois, com o casal bem resolvido, não tem novela. Revelou que tinha dois encaminhamentos possíveis para a história dos indianos: Um seria contar uma história de amor proibido, uma história de Romeu e Julieta através de Bahuan e Maya, esta história que já vimos milhares de vezes. Mas a história que ela realmente queria era a história do amor construído, muito mais original e foi experimentando. Como a resposta do público foi positiva, optou por esse final.
Glória faz pesquisa antropológica para abordar seus temas. Ela mesma vai à casa das pessoas, conversa com elas, quer saber como pensam, como vivem. Depois, quando começa a escrever e não tem mais tempo, a sua pesquisadora assume o trabalho e a acompanha durante toda a trama. Em Caminhos utilizou muito uma frase que ouviu dos próprios indianos quando lhes perguntou como conseguiam se casar com alguém que nunca tinham visto antes: “Vocês casam com a água fervendo e com o tempo ela esfria. Nós casamos com a água fria e com o tempo ela ferve”.
Apesar de suas campanhas, Glória acredita que as novelas NÃO têm o poder de educar e acredita que esta idéia é perigosa. Deixou claro que o papel da educação é das instituições, como a família e a escola. A Novela não pode substituir a educação, pode apenas ajudar ao colocar um assunto em discussão, já que tem imenso poder de penetração. Existem até mesmo tribos indígenas, no Acre, que assistiram O Clone. Sensata, falou com firmeza que devemos cobrar certo, cobrar do governo e das instâncias competentes uma educação bacana e não ficar esperando que a mídia tenha esse papel.
Para ela, todos nós, independentemente da profissão, podemos e devemos intervir de forma positiva na sociedade e as campanhas são a forma que encontrou para isso. Glória sabe que o papel da novela é entreter e fazer sonhar e como isto é importante para os seres humanos, mas, acredita que todos podem usar o seu trabalho em benéficio do público. Ela não esconde o orgulho de ter ajudado a encontrar mais de 100 crianças desaparecidas a partir da campanha de “Explode Coração”, que considera a mais bem sucedida. Até hoje ela se lembra de Rosemary, a primeira mãe a encontrar o seu filho a partir da novela.
Como não podia deixar de ser, a dança também foi assunto. Toda novela de Glória tem uma gafieira, sua paixão confessa. Para ela a dança de salão propicia um contato, uma troca de energia entre as pessoas. Vítor, o mediador, aproveitou para fazer uma comparação interessante entre a dança de salão e a dança de discoteca, pois esta última seria uma alegoria do nosso mundo atual, mais individualizado.
Para os roteiristas, acredito que Glória deu uma ótima dica quando, diante da pergunta se prefere fazer o que o público quer ou surpreende-lo respondeu que O público gosta de ser surpreendido, mas, ele gosta de gostar da surpresa. O mais engraçado é que nesta hora ouvi do adolescente que estava sentado ao meu lado que era isto que faltava em Malhação. Fica aí a lição.
Outra dica preciosa: O novelista jamais deve escrever sobre suas próprias vivências, é preciso um certo distanciamento para escrever bem sobre algo. Para exemplificar, contou sobre uma atriz que mostrou um verso seu, escrito no auge da paixão, para o poetinha Vinicius de Moraes, que o rasgou em pedacinhos.
Sobre os atores, Glória diz gostar de trabalhar com aqueles que se entregam ao papel, que se deixam tomar pela emoção. Se o ator critica o personagem acaba não funcionando. Há atores, que são muito bons, mas fazem com que você veja o ator, ela gosta de atores que fazem o público esquecer quem eles são e ver somente o personagem.
Ela também falou dos problemas comuns para quem escreve novela, como dificuldades com elenco, produção, além de ter que contar com o impoderável, coisas que o autor tem que administrar e deu o seguinte exemplo: Quando Janete Clair escreveu Pecado Capital a idéia era que a mocinha Lucinha acabasse com Carlão, interpretado por Francisco Cuoco, o galã da época. Só que o público se apaixonou por Salviano Lisboa, o outro vértice do triângulo interpretado por Lima Duarte e não houve jeito: Salviano e Lucinha terminaram juntos. Ao fazer o remake, Glória achou que este seria o final, mas, os atores que interpretavam Lucinha e Salviano brigaram no meio da novela e se recusaram terminantemente a se beijar. Como fazer par romântico sem beijo?
Ela classifica que o corte do beijo gay em América como o único problema mais sério que teve em sua trajetória profissional. Haviam gravado a cena, que segundo ela, tinha ficado linda, com cara de filme dos anos 50 porque “se você quer mostrar uma relação gay na TV tem que ir pela via do afeto, do amor, não dá para mostrar nada de tesão porque isto assusta o público”(sic).
Falou ainda sobre preconceitos e sobre as dificuldades enfrentadas pelas primeiras gerações que vivem determinados fatos históricos. Citou o caso dos bebês de aluguel, que trouxeram uma nova realidade, já que não existe nenhum código para maternidade, anteriormente era apenas uma evidência. E aí vêm essas mulheres e subvertem esta evidência: a que dá óvulo tem que aprender a ser mãe e a que carrega o filho que a mãe é outra mulher.
Foi isso também que a levou a escrever o final do clone Léo, sozinho caminhando para algum lugar que não sabemos onde vai dar. Glória também não sabe para onde o clone iria. Não se sabe onde isso poderia parar. Vivemos numa cultura onde se busca a identidade o tempo todo e o clone não tem uma identidade formada, é a cópia de alguém.
Já sobre preconceitos disse que a dificuldade é que você só enxerga o preconceito e não vê a pessoa que está por trás. Uma coisa é a idéia predominante do grupo e a outra que todo mundo vê aquilo daquele jeito.
Saí da Biblioteca Nacional, feliz e realizada, certa de que aprendi com Glória preciosas lições, desde aquelas ligadas a dramaturgia até as lições de cidadania e respeito ao próximo.

2 comentários:

  1. Querida obrigada por compartilhar conosco as palavras dessa grande autora. Bjs

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  2. Puxa! Que vontade de morar no Rio para presenciar um eventos desses. Se seu resumo já me deixou empolgado, imagine a íntegra!

    Muito obrigado por compartilhar esse conhecimento.

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